A Câmara Federal vê-se às voltas com uma votação crucial, a que autoriza à Petrobras transferir a “terceiros” áreas altamente prolíferas que ela recebeu da União em condições excepcionalmente vantajosas simplesmente por ser uma estatal brasileira.
Por Haroldo Lima*
Sobre o assunto quero dar um testemunho, especialmente para meus ex-colegas parlamentares, com os quais, em épocas passadas, convivi por vinte anos.
Estava Diretor Geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis no período da descoberta do pré-sal. Participei da Comissão Ministerial de oito membros que, por quase dois anos de intensos trabalhos, elaborou quatro anteprojetos de lei relativos ao pré-sal e os encaminhou ao Congresso. Esses projetos, submetidos a amplo, demorado e profundo debate com os deputados e senadores foram aprimorados e transformados em três leis aprovadas nas duas Casas do Congresso: a Lei 12.351/2010, que cria e regula a partilha da produção e o Fundo Social; a Lei 12.304/2010 que cria a empresa 100% estatal, Pré-Sal Petróleo S.A., PPSA, para gerenciar o pré-sal; e a Lei 12.276/2010, que cede à Petrobras uma enorme quantidade de petróleo, 5 bilhões de barris, em condições excepcionalmente vantajosas e únicas, para que ela pudesse se capitalizar, que é a chamada Lei da Cessão Onerosa.
Aprovadas essas leis, passou-se então à elaboração do Contrato de Cessão Onerosa, com o trabalho articulado do Governo Federal, através dos Ministérios de Minas e Energia e do Ministério da Fazenda; da Petrobras; e da ANP.
O Contrato elaborado resultou em um detalhado documento de cinquenta e cinco páginas, que chegam a oitenta, com as tabelas e quadros anexados.
Esse contrato foi então assinado pelos representantes do Governo, os Ministros de Minas e Energia e o Ministro da Fazenda; pelos representantes da Petrobrás, seu Presidente e dois Diretores; e pela ANP, representada por mim.
Sou assim um dos autores e subscritores do Contrato de Cessão Onerosa de 80 páginas, que agora, com a Lei correspondente, querem que seja revogado, em “regime de urgência”.
Os que tramam essa manobra, desrespeitam os colegas, desejando que eles revoguem uma Lei e um Contrato sem sequer conhecerem, pois que pela amplitude do Contrato, não houve tempo hábil dele ser manuseado, não tendo, ao que estou informado, sequer sido distribuído.
Fui deputado por vinte anos, fui constituinte e tenho consciência de como ficava inconformado quando se pretendia que os deputados e senadores votassem sem plena consciência do que estavam fazendo, sem ter uma informação minuciosa do que estão eventualmente revogando e, sobretudo, sem saberem os motivos escusos que provavelmente estão por trás da pretendida votação.
Por isso quero aqui indicar, para conhecimento dos senhores deputados, meus ex-colegas, alguns aspectos da questão que estão chamados a votar:
1. Descoberto o pré-sal em 2006/7, a Comissão Ministerial de oito membros acima referida considerou oportuno localizar, na vasta província recém-descoberta, dois blocos passíveis de terem o petróleo certificado por certificadoras internacionais. A ANP localizou dois pontos em áreas da União e em seguida contratou a Petrobras para perfurá-los. Foram assim descobertos Franco e Libra.
2. Deliberou-se então, com o apoio do Congresso, que cinco bilhões de barris de Franco (hoje campo de Búzios) seria cedido à Petrobras em condições especiais, únicas, altamente vantajosas. Que a Petrobras venderia ações no mercado e assim se capitalizaria, pagando o petróleo à União em ações. A Petrobras não desembolsaria nada, mas ao contrário, teria recursos inclusive para mais investir no pré-sal. Isto aconteceu e a Petrobras levantou cerca de R$120 bilhões (US$ 70 bilhões), na maior arrecadação já feita no mundo em uma operação dessa natureza. E ela se capitalizou em mais de R$70 bilhões.
3. Resolvido o problema de ajudar a Petrobras a se capitalizar, o governo deliberou, com o apoio do Congresso, que o outro campo, de Libra, de dimensões semelhantes a Franco, deveria ser leiloado de forma transparente para reforçar o caixa da União, o que foi feito, recolhendo-se um Bônus de Assinatura de R$15bilhões em um contrato de partilha beneficioso à União.
4. Permitir agora que a Petrobras abra mão de 70% das jazidas da cessão onerosa é revogar a Lei e o Contrato da Cessão Onerosa, porque eles seriam alterados em suas essências, pois que eles foram feitos exclusivamente para beneficiar a Petrobras apenas por ser uma empresa na qual o Estado tem quase 50% do capital social e a maior parte do votante.
5. Nessa tentativa de alterar a Lei e o Contrato de Cessão Onerosa insere-se um procedimento extremamente perigoso, altamente prejudicial aos interesses nacionais e que pode conduzir a uma ação junto à Procuradoria Geral da República por favorecimento indevido a “terceiros”, esbulhando a União.
É que, na Cessão Onerosa os royalties ficaram de 10% e não 15% como no restante do pré-sal.
Que as Participações Especiais, que em grandes campos petrolíferos são maiores que os royalties, não serão cobradas. Que o Bônus de Assinatura, que em bloco similar, o de Libra, foi de R$15 bilhões, lá, na cessão onerosa, em Franco (hoje Búzios), para beneficiar a Petrobras, não existiu. Que licitação que há para todo o restante da área, para a cessão onerosa não houve, e a Petrobras foi escolhida para recebe-la.
Passar todas essas excepcionais vantagens destinadas especificamente à Petrobras para um “terceiro” é uma expropriação ao povo brasileiro.
6. O PL que se pretende votar a toque de caixa fala em transferir essa área a “terceiros”. Mas que “terceiros” seriam estes? De onde eles vêm? Que papel estão tendo no apressamento desta indecorosa matéria esses “terceiros”?
7. Digo como pessoa que dirigiu por quase oito anos a ANP, que não há uma só empresa brasileira capacitada a entrar nas áreas da cessão onerosa, por absoluta falta de meios. Só tem um tipo de “terceiro” à vista: a empresa estrangeira. Na verdade, o que se quer é forçar o Congresso a votar, no escuro, a toque de caixa, benefícios que só multinacionais do petróleo poderão usufruir.
8. Por tudo isto é que a Lei da Cessão Onerosa, no parágrafo 6º do art. 1º diz que, “A cessão de que trata o caput é intransferível”, ou seja, a área da cessão onerosa não pode ser transferida a ninguém. Isto é o que está na Lei que se pretende revogar sumariamente. Então, basta mudar a correlação de forças no meio dos deputados e senadores para que esse cuidado que deputados e senadores tiveram no passado seja abandonado?
9. Por último, um alerta. Nenhuma grande petroleira abre mão de um grande campo de petróleo, que vai iniciar a produção, e no qual é operadora, se tiver pretensões de continuar a ser grande. Só uma empresa que pretende se privatizar abre mão de ativos desse tipo. Isso é inaceitável.
10. Barrar a entrega das áreas da Cessão Onerosa a multinacionais é um dever que os parlamentares não podem recusar.
Haroldo Lima é ex-deputado federal (PCdoB- Ba), ex-diretor geral da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis e do Comitê Central do Partido Comunista d Brasil.
Portal Vermelho