Este texto é a quarta parte de uma série sobre o desmonte da Petrobras, iniciado no governo Temer e aprofundado pelo de Jair Bolsonaro. Leia também:
1. O desmanche da Petrobras, e como pará-lo
2. Petrobrás, vaca leiteira dos mercados?
3. Petróleo: a estratégia para a recolonização
Subdesenvolvimento não se improvisa – é obra de séculos, escreveu o dramaturgo Nelson Rodrigues. Nos textos anteriores desta série (1 2 3), vimos como este vaticínio está prestes a se realizar também no caso do petróleo brasileiro. A Petrobrás, que descobriu reservas gigantescas e as explora, vem sendo desmembrada, em operações obscuras e realizadas sem debate com a opinião pública. Além disso, os dirigentes nomeados pelos governos Temer e Bolsonaro impuseram à população uma política de preços extorsiva, que desgasta a estatal junto à sociedade e dificulta sua defesa. Mas os lucros astronômicos gerados em consequência não são reaplicados na estatal – cujos investimentos minguaram – e sim transferidos a seus acionistas, majoritariamente privados e internacionais. Articuladas, estas ações estão levando à apropriação, por especuladores, de operações e subsidiárias estratégicas à Petrobrás. O objetivo final é claro e já foi enunciado, mais de uma vez, pelo ocupante do Palácio do Planalto: privatizar toda a empresa, despojando o país também dos campos de petróleo.
Mas ninguém tenta sufocar um organismo morto. Nossa pesquisa revela, como se verá a seguir, que a captura da Petrobrás é uma obra inacabada e frágil. Do ponto de vista tecnológico, a empresa conserva a excelência que lhe permitiu localizar e explorar jazidas em profundidades muito além das alcançadas por outras petroleiras – daí a descoberta do pré-sal. Nos planos legal e jurídico, todo o processo do desmonte pode ser revertido. A Petrobrás é, segundo a legislação brasileira, uma empresa com finalidade clara: explorar e processar a riqueza petrolífera do país, em favor dos interesses coletivos da sociedade. Esta definição dá bases para que um novo governo recompre a maioria das ações da companhia e recupere suas subsidiárias entregues a capitais privados.
Uma companhia fortalecida poderá, em novo cenário político, desempenhar papéis mais amplos do que os realizados até agora. Um deles é agir contra a regressão produtiva do país – estimulando, por meio de suas compras, um vasto setor industrial ligado à geração de energia. Outro: liderar a transição energética, investindo no desenvolvimento de fontes limpas, como a fotovoltaica e a eólica. É preciso ampliar, além disso, a distribuição social da riqueza petroleira. Mudanças na legislação podem permitir que ela fortaleça substancialmente os fundos públicos que financiam a Saúde, a Educação e o desenvolvimento da Ciência. E a Petrobrás tem, além disso, uma particularidade: ela gera moedas internacionais, que podem ser decisivas para adquirir as tecnologias necessárias a um novo padrão de desenvolvimento
A partir de 26/4, uma série de diálogos organizados por Outras Palavras desenvolverá estes temas. São parte do projeto Resgate, que lançamos no ano passado — com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo — e recomeça agora. Por meio dele, sugerimos que é preciso constituir um novo horizonte político – oposto ao do neoliberalismo – no país. O desmonte da Petrobrás é uma das marcas da nossa recolonização. O reerguimento da empresa pode sugerir que estamos vivos, e podemos lutar contra ela.
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A série será inaugurada (em 26/4, às 20 horas) com o exame de algo normalmente tratado como um mito: a riqueza do pré-sal. Condições geológicas particulares permitiram que se formassem ao largo do litoral brasileiro, na faixa que se estende do Espírito Santo ao norte de Santa Catarina, enormes reservatórios de petróleo. Como a área é muito ampla, ocupando, sob o fundo do oceano, uma superfície comparável à da Alemanha, não foi possível ainda nem delimitá-la nem, menos ainda, avaliar todo o volume de óleo que contém. Estimativas de 2015 falam em “ao menos em 176 bilhões de barris”, o que tornaria o Brasil detentor, só nesta área, da terceira maior reserva do planeta, entre a Arábia Saudita e o Irã.
O geólogo Guilherme Estrella, que ocupou a diretoria de Exploração e Produção da Petrobrás e é reconhecido como principal responsável pela descoberta das reservas do pré-sal, falará sobre elas. Relatará o esforço tecnológico e econômico realizado para localizá-las, sob a pressão de 2 mil metros de água salgada e 5 mil metros abaixo do solo do mar (a exploração de cada poço pioneiro chegou a custar 200 milhões de dólares). Explicará como a abundância das jazidas e o conhecimento acumulado pela Petrobrás permitem extrair o petróleo, mesmo em condições extremas, a um custo de cerca de 10 dólares por barril, comparável aos mais baixos do mundo. Mas abordará também uma batalha ainda mais difícil: as disputas políticas pelo controle do petróleo.
Estrella é geólogo de fama internacional (ainda em 1976, na Braspetro, participou da descoberta do campo iraquiano de Majnoon, um dos maiores do mundo). Além disso, é um ativista político. Ele narrará as mudanças na legislação que, num primeiro momento, procuraram garantir o acesso da Petrobrás ao óleo do pré-sal e mais adiante, em reviravolta, abriram-no a corporações estrangeiras. Apontará o que perdemos (e é preciso recuperar). Terá, no diálogo, uma companhia luxuosa. Também estará presente o Senador Roberto Requião (PT-PR), possivelmente o político que defendeu de forma mais intensa, no período recente, o petróleo brasileiro – contrapondo-se inclusive às concessões do governo Dilma. Juntos, Requião e Estrella permitirão enxergar a relevância – inclusive geopolítica – dos campos brasileiros de petróleo e, em consequência, a crueza da batalha travada em torno deles.
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A série prosseguirá um dia depois (27/4, às 20h) com um segundo tema crucial. O coordenador geral da Federação Única dos Petroleiros (FUP), Deyvid Bacelar, e o engenheiro e consultor legislativo Paulo César Ribeiro de Lima abordarão o desmonte da Petrobrás e, em especial, as estratégias para revertê-lo. O diálogo percorrerá um conjunto de tópicos pouquíssimo abordados na mídia comercial, cujo silêncio facilita, desde 2016, a operação de desmantelamento em curso.
Deyvid e Paulo César discutirão, por exemplo, a importância de o Brasil voltar a refinar todo o petróleo que produz, ao invés de exportar o produto cru e comprar os combustíveis processados. Superar esta condição regredida é perfeitamente possível: já em meados dos anos 1970, quando era um grande importador de petróleo, o país havia adquirido autossuficiência no refino. A dependência atual é uma construção política. No momento em que houver a decisões em sentido oposto, não faltarão meios técnicos para interromper a privatização das refinarias, voltar a operá-las com plena capacidade e inibir a importação. Para que a obra não fique incompleta, valerá renacionalizar a histórica Landulfo Alves, primeira refinaria nacional, responsável por quase 15% da produção de combustíveis no país e entregue a um fundo de “investimentos” pertencente ao emir de Abu Dhabi…
Reverter o desmonte da Petrobrás exige outros passos. Os debatedores comentarão a venda semioculta da BR Distribuidora. Privatizada em condições cavernosas e por preço aviltado; controlada agora, entre outros, pelo fundo trilionárioBlack Rock, continua ostentando, em seus postos de combustível, a logomarca e o próprio nome Petrobras. Deyvid e Paulo César poderão discorrer ainda sobre a Braskem, braço petroquímico da estatal com mais de 40 plantas (das quais 11 no exterior), colocado à venda. Ou sobre as fábricas de fertilizantes, que seriam ainda mais necessárias diante da escassez internacional do produto e foram privatizadas. Não esquecerão da Liquigás e das duas grandes redes de gasodutos, que precisam ser recuperadas.
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Como recuperar todas estas operações? Este será o tema, na terça-feira seguinte (3/5, às 20h) do diálogo com Gilberto Bercovici, professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP. Seus estudos sobre o ordenamento legal do petróleo brasileiro têm identificado caminhos muito relevantes para questionar – e desfazer – boa parte dos atos que levam ao desmonte da Petrobrás e ao desmembramento de suas subsidiárias.
O primeiro é recorrer à própria Constituição. Ao contrário do que tantas vezes se afirma, o monopólio estatal sobre o petróleo não foi revogado. A Emenda Constitucional 9, aprovada no governo Fernando Henrique Cardoso (em 1995), não cancelou o monopólio estatal de petróleo. O artigo 177 continua estabelecendo que “a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos”, assim como “a refinação do petróleo nacional e estrangeiro” são reservados à União (incisos I e II do caput). Esta poderá contratar empresas estatais ou privadas (parágrafo 1º) para agirem em seu nome. São obviamente inconstitucionais, portanto, os dispositivos legais (por exemplo, os da Lei nº 9.478/97) que obrigam o Estado a oferecer, em leilões, as jazidas brasileiras que deseja explorar.
As reflexões de Bercovici vão além. Ele aponta que, mesmo segundo a legislação (em parte inconstitucional) que segue em vigor, a Petrobrás não é uma empresa ordinária, nem tem por papel gerar lucros a seus acionistas. Sua missão essencial é executar as políticas definidas pelo Estado em relação ao petróleo. Nada a obriga a impor preços de combustíveis extorsivos, para contemplar os apetites destes acionistas. Nada a impede de adotar iniciativas que, não sendo imediatamente lucrativas, correspondam a objetivos da sociedade brasileira – a reindustrialização do país, por exemplo.
Um governo disposto a resgatar a Petrobrás sofrerá, é claro, resistência política. Mas, se estiver disposto a enfrentá-la (e a mobilizar a sociedade em favor deste resgate), poderá apoiar-se nas leis e no Direito. Para debater este tema com Gilberto Bercovici, está convidada a Deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), uma notável defensora tanto da Petrobrás quanto das políticas redistributivas e de um projeto de desenvolvimento sustentável para o país.
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Que políticas específicas permitirão redistribuir a riqueza petroleira? Este será o tema do diálogo seguinte da série, do qual participarão (em 4/5, às 20h) Ildo Sauer, ex-diretor da Petrobrás, e Ronaldo Pagotto, um dos coordenadores do Projeto Brasil Popular. Professor titular da USP, colaborador ativo do Instituto de Estudos Avançados (veja alguns de seus artigos), Ildo tem defendido duas hipóteses instigantes sobre o tema. Seus estudos sobre o livro 3 de O Capital – em especial o capítulo acerca das Rendas e suas Fontes – levam-no a frisar a importância da disputa pela renda petroleira, às vezes subestimada inclusive por autores marxistas. Seus cálculos sustentam que, mesmo no estágio atual, em que apenas parte do pré-sal está explorada, esta renda poderia equivaler a 88 bilhões de dólares ao ano. Apropriada pelo Estado, e investida na transformação do país, poderia modificar a face da sociedade brasileira.
O professor julga muito tímido o passo dado no governo Lula para esta apropriação. Em dezembro de 2010, a Lei nº 12.351 permitiu substituir o regime de concessão dos campos de petróleo (estabelecido à época de FHC) pelo de partilha. O nome sugere o sentido da mudança. O Estado já não concedia a exploração das jazidas: mantinha ao menos parte do controle sobre o processo – em especial sobre os ritmos de extração. Evitava, por exemplo que, em épocas de preços internacionais baixos, uma petroleira ampliasse a retirada do óleo brasileiro, enquanto poupava suas reservas em outras partes do mundo.
Ildo argumenta, amparado também em números, que a mudança foi incapaz de arranhar os interesses das corporações petroleiras. Sugere duas alternativas. A primeira é um novo regime, em que o Estado simplesmente contrate os serviços das empresas de petróleo. Em sua visão, a Petrobrás seria a operadora única. Seria remunerada, com lucros, por seu esforço de exploração e extração do petróleo. Receberia, digamos, 15 dólares por barril, para remunerar seu custo de US$ 10. Toda a diferença entre esta remuneração e os preços internacionais (hoje, US$ 115) seria apropriada pela sociedade brasileira. O mesmo efeito, considera o professor, poderá ser obtido se o Estado estabelecer, mesmo nos regimes atuais, um tributo de alíquota muito elevada sobre a extração de petróleo.
O advogado Ronaldo Pagotto, que dialogará com Ildo a respeito, expressa uma articulação notável dos movimentos sociais para o debate programático sobre o futuro país. O Projeto Brasil Popular, que ele ajuda a coordenar, mobiliza 31 grupos de trabalho, que se distribuem em quatro eixos temáticos e já produziu quatro cadernos (1 2 3 4) de diagnósticos e propostas.
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Nossa série de diálogos tratará em profundidade o tema angustiante do preço dos combustíveis. Um botijão de gás já custa o equivalente a quase três dias de trabalho, para quem ganha salário mínimo. Há anos, os aumentos do diesel deflagraram uma gigantesca manifestação de caminhoneiros, que abalou politicamente o país e cujo fogo se mantém aceso. Fernando Siqueira, diretor da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (Aepet), falará (em 10/5, às 20h) sobre o tema. Irá muito além de denunciar o PPI – Preço de Paridade Internacional –, que obriga a população, a cada retorno ao posto de combustíveis ou a cada troca do botijão de gás, a engordar os lucros dos grandes acionistas privados da Petrobrás.
Seu desafio será debater parâmetros para uma nova política de preços. Além de ressarcir o custo dos combustíveis (segundo cálculos da Aepet, bastariam em média R$ 1,50 por litro de gasolina ou diesel), que outros fatores ele deve incluir? A contribuição a um Fundo de Transição Energética, para financiar investimentos em eletricidade gerada a partir da energia solar e dos ventos, e desestimular o consumo de fósseis? Um subsídio cruzado, que reduza os preços do gás de cozinha, transferindo parte de seus custos para os proprietários de automóveis? Um imposto com arrecadação vinculada à construção de redes de transporte público?
Fernando Siqueira terá a companhia de um pesquisador singular, que combina produção teórica de profundidade com crítica e ação política. Professor de Economia Política e Economia Brasileira da UFRJ, Eduardo Costa Pinto integra também a equipe técnica do INEEP — um think tank a partir do ponto de vista da transformação social. Em seus artigos, ele examina amplos aspectos da tentativa de desmonte da Petrobrás: o abandono das refinarias, os preços abusivos dos combustíveis, a transferência de recursos para os acionistas privados, os efeitos da venda da BR Distribuidora . Juntos, Siqueira e Costa Pinto demonstrarão que a política de preços comporta um leque de opções a serem debatidas com a sociedade brasileira – mas jamais pode ser, como hoje, a resultante das pressões dos “mercados”.
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Um dia depois (em 11/5, às 20h), o economista Luiz Gonzaga Belluzzo e o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães introduzirão um tema sempre desprezado pelos que querem ver a Petrobrás despida de seu caráter de empresa de interesse público. Eles vão dialogar sobre o papel da Petrobrás na reconstrução da indústria brasileira. Por meio da política de “conteúdo local”, existente até 2016, a estatal dava preferência, em suas compras industriais (de bilhões de reais ao ano) a empresas brasileiras – respeitando, é claro, uma margem máxima de diferença de preços em relação aos equipamentos importados. Tal prioridade foi extinta sob Temer e Bolsonaro.
Belluzzo vislumbra sua retomada e forte expansão. A Petrobrás e a Eletrobrás deveriam, segundo ele, integrar-se numa grande empresa brasileira de energia. É o rumo que tem seguido, por sinal, a maior parte das empresas petroleiras importantes do mundo. Atuando num país continental, cujas necessidades energéticas permanecem em grande medida insatisfeitas (o consumo brasileiro per capita de kW/hora é 4,8 vezes menor que o norte-americano e 2,7 vezes inferior ao da Alemanha ou França), esta empresa teria enorme demanda a atender. Precisaria empenhar-se, além disso, em limpar a matriz energética brasileira, ampliando rapidamente a participação solar e eólica. E deveria modernizar as redes de transmissão, combatendo o desperdício de energia e introduzindo sistemas inteligentes – capazes, por exemplo, de receber a eletricidade gerada por consumidores individuais por meio de painéis solares.
Este esforço de ampliação e renovação energética pode produzir imensa mobilização e gerar milhões de ocupações. Mas tem uma contrapartida industrial estratégica. Pode estimular uma vasta produção de material elétrico, de alta e média tecnologia. Ela teria encomendas certas: as fazendas solares ou eólicas (veja a seguir o debate sobre em que condições instalá-las); as novas linhas de transmissão; as instalações residenciais. A nova empresa brasileira de energia faria as aquisições. A construção de um setor industrial elétrico está em sintonia com uma das ideias mais atuais a respeito da reconstrução de um parque fabril no país. Ao contrário do que ocorreu no primeiro período desenvolvimentista, ela não poderá se dar por meio de políticas generalizadas de “substituição de importações”. Será muito mais inteligente e efetivo fazê-la escolhendo setores-chave, em que o desenvolvimento industrial atenda a necessidades sociais e ambientais. A transição elétrica é um deles. Mas é óbvio que esta tarefa é típica de um consórcio Petrobrás-Eletrobrás – jamais de empresas privadas cujo objetivo seja ampliar cada vez mais os lucros dos acionistas.
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Em meio à aceleração da crise climática, não seria possível tratar adequadamente o futuro de uma empresa petroleira sem dar destaque especial à transição energética. A série construída por Outras Palavras reserva um diálogo especial para este tema. Ocorrerá em 17/5, às 20h. Reunirá a economista Clarice Ferraz (especialista em Energia e diretora do Instituto Ilumina) e, como convidado, outro pesquisador destacado do INEEP: Rodrigo Leão, coordenador técnico do instituto, cuja produção pode ser encontrada tanto em seu site quanto no da revista Carta Capital.
Vimos no ponto anterior que uma empresa brasileira de energia, criada a partir da Petrobrás e da Eletrobrás, pode ter enorme papel na mudança da matriz elétrica brasileira. A geração de energia a partir dos combustíveis fósseis precisa ser fortemente reduzida. Isso é ainda mais verdadeiro agora, quando o custo das fontes limpas caiu espetacularmente, e no Brasil, onde há luz solar abundante e ventos em vastas áreas do território e do litoral. Mas o diabo mora nos detalhes desta transição. Ela tem sido capturada por grandes corporações privadas. Para estas, torna-se uma fonte de lucros como qualquer outra. Multiplicam-se, especialmente no Nordeste, os casos em que a instalação de cataventos eólicos desaloja comunidades camponesas.
Que contornos a transição pode assumir, se coordenada por uma empresa comprometida com o interesse público? Clarice poderá abordar este aspecto da questão. Há um leque de alternativas a debater. O engenheiro Roberto d’Araújo, também do Instituto Ilumina, tem defendido uma solução de notável racionalidade. Por que não gerar grandes volumes de energia – pergunta ele – instalando painéis solares móveis sobre os imensos lagos das hidrelétricas?
Outras propostas, mais delicadas, merecem exame criterioso. E se a transição energética favorecesse os povos originários — ao contrário de atingi-los, como ocorreu no caso desastroso de Belo Monte? Há, em muitos territórios indígenas e quilombolas, ou em assentamentos da reforma agrária, áreas que poderiam destinar-se a fazendas de geração solar. Se a hipótese de instalá-las fosse testada com pleno respeito à autonomia das comunidades e ao princípio de seu consentimento informado, estas fazendas não poderiam tornar-se uma fonte de sustento dos territórios? Não seriam uma alternativa sustentável e de usufruto coletivo, oposta à atração que atividades como o garimpo exercem sobre setores destas comunidades? E quanto à geração residencial: o Brasil, a exemplo de outros países, não deveria estimulá-la ao máximo – por exemplo, remunerando em dobro a energia oferecida pelos painéis solares domésticos às redes de distribuição? Não custa lembrar: são questões que só poderão ser colocadas se a geração elétrica estiver sob a égide de uma empresa voltada a atender o interesse público – não a gerar lucros para os controladores privados.
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A série de debates sobre o resgate da Petrobrás e a renacionalização do pré-sal será fechada em 18/5 (excepcionalmente às 16h), com um diálogo que transbordará o campo específico do petróleo, para tratar da luta contra a regressão econômica, social e política do Brasil. O economista Márcio Pochmann, que tem descrito este retrocesso numa sequência de artigos publicados por Outras Palavras, especulará sobre a possibilidade de revertê-lo – em especial, empregando os dólares gerados pela estatal.
Vale uma explicação. Nos últimos anos, tem ganhado corpo, na Economia, a ideia de que os Estados podem emitir moeda nacional de forma muito menos limitada do que se pensava, para financiar a garantia dos direitos sociais, a geração de empregos dignos e a renovação da infraestrutura. A ideia de que esta emissão é em si mesma inflacionária já não se sustenta. Quando há abundância de mão de obra desaproveitada e recursos materiais disponíveis, como no Brasil, os governos podem mobilizá-los criando dinheiro para remunerá-los. Exemplo: um programa nacional voltado a universalizar o saneamento básico, e a despoluir os rios urbanos e áreas costeiras, pode ser financiado por meio da contratação de milhares de trabalhadores (de todos os níveis, do peão ao engenheiro e ao planejador ambiental) e da construção de redes de coleta e estações de tratamento. Nenhuma destas ações provocará aumento dos preços da comida, ou dos combustíveis…
Mas só a exportação de produtos como o petróleo, que gera moedas de circulação internacional, garante a compra de outro tipo de bens. O Brasil não pode obter maquinário sofisticado produzido no exterior, ou tecnologia, pagando-as em reais. Não se monta uma indústria farmacêutica, ou de equipamentos hospitalares, sem dólares. Pochmann tentará resolver uma equação: de que forma as moedas fortes obtidas com a renda do petróleo podem adquirir os bens e serviços necessários para tirar a economia brasileira do atraso e reconstruir um setor produtivo dinâmico?
O economista Ladislau Dowbor participará do mesmo debate. Consultor de diversas agências da ONU, ele participou do planejamento econômico de países da América Latina e África. Conhece como poucos a importância de contar, nesses processos, com divisas de circulação global. Além disso, três de seus livros mais recentes — A Era do Capital Improdutivo, a nova edição de Pão Nosso de Cada Dia e O Capitalismo se Desloca — tratam precisamente das novas formas de extração de riqueza coletiva por parte da oligarquia financeria. Neles (e em particular numa nova obra, que sairá em breve), Dowbor não se limita à denúncia. Busca, em especial, caminhos para organizar as sociedades a partir de novas lógicas.
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A trajetória da Petrobrás espelha, de várias maneiras, a do Brasil. Os avanços da empresa expressaram, em vários períodos de nossa história recente, o ímpeto de superar a colonização. Em outras fases – como agora – sua captura coincidiu com a devastação dos projetos de um país mais justo e menos desigual.
Será possível resgatar a companhia? Este movimento sinalizará, no segundo centenário de nossa independência formal, que uma reconstrução do país em novas bases é possível? Por trás dos debates que Outras Palavras promoverá a partir de 26 de abril há uma aposta. Realizá-la exige forças muito mais potentes – que esperamos contribuir para despertar.
Fonte: Outras Palavras