Guilherme Estrella, geólogo e ex-diretor de Exploração e Produção da Petrobrás entre os anos de 2003 e 2012. Ele é considerado o “Pai do Pré-Sal”, rótulo que rejeita de pronto. Mas essa é a imagem que fica para quem decidiu seguir no que considera um “investimento de risco, mas não sorte” e resultou na maior descoberta de petróleo dos últimos 50 anos em todo o mundo. 

Estrella, que veio até Curitiba para visitar o ex-presidente Lula, deu uma longa entrevista sobre o papel da empresa estatal ao assumir o risco dos investimentos para descobrir o pré-sal. Também revelou como a Shell abriu mão desta mesma descoberta por falta de conhecimento técnico e medo de investir no Brasil, analisou o papel da imprensa nas notícias relacionadas à descoberta e falou sobre a soberania nacional e o desenvolvimento industrial ligados à questão energética. 

Para o geólogo, que também foi gerente de Exploração da Petrobrás no Iraque, desde a descoberta de um enorme campo de petróleo em águas brasileiras, entre os anos de 1976 e 1978, o povo está sendo saqueado. “Estão entregando todo o esforço de construção de uma infraestrutura para servir um mercado que tem um potencial de crescimento gigantesco. Quem investiu na Petrobrás, os proprietários da Petrobrás somos nós, o povo brasileiro. Quer dizer que o cidadão brasileiro está sendo roubado. Está sendo saqueado nos seus direitos de proprietário da Petrobrás por um governo que quer esquartejar o sistema e vender as refinarias”, afirmou.

Confira a entrevista: 

Brasil de Fato. O que o pré-sal representa, ou poderia ter representado, para o Brasil?

Guilherme Estrella: É uma pergunta boa para início de conversa. Mas ela exige uma certa reflexão do que nos levou a descoberta do pré-sal. Isso é importante porque o Brasil sempre foi carente de combustíveis, como petróleo e gás natural.

Nós atingimos a autossuficiência em 2006 com a descoberta do petróleo na Bacia de Campos, mas a perdemos logo. Somos a 9ª economia do mundo e um país deste tamanho e com esta economia, se tiver uma boa distribuição de renda, tem potencial para consumir 3, 4 , 5 milhões de barris por dia, fácil.

Com a ascensão do presidente Lula à Presidência da República, a Petrobrás retornou a ter liberdade de expansão na área de exploração e produção. Não ficamos restritos apenas à Bacia de Campos.  Foi assim que nós fizemos. Batemos na Bacia de Santos, ao sul da Bacia de Campos, uma área muito próxima.

Essa área do pré-sal estava aberta para exploração de empresas estrangeiras, mas elas não investiram. Porque a atividade de exploração é muito arriscada e então essas empresas não querem correr riscos. Já a Petrobrás expandiu as suas atividades para outras bacias correndo esse risco. A exploração é arriscada, mas não é uma loteria.

É preciso enfrentar esse risco não com a sorte, mas com competência. Para isso são necessários profissionais extremamente qualificados e comprometidos com a missão da empresa e foi isso que fizemos. Foram brasileiros, de uma empresa brasileira, com uma competência diferenciada. A Petrobrás está, seguramente, entre as mais competentes e não a mais competente e o pré-sal é produto disso. De uma decisão política do governo brasileiro associada à competência de um quadro de técnicos e administradores muito bem treinados que nos propiciaram correr esse risco de uma maneira responsável.

Guilherme, a Shell chegou perto de descobrir o Pré-Sal, não é isso?

Estrella: É verdade. A Shell tinha um bloco de concessão e é importante dizer porque a descoberta do Pré-Sal tirou esse risco. O governo brasileiro, então, transformou o modelo de gestão do setor petrolífero, passando de concessão para partilha de produção. A diferença entre estes modelos é que, basicamente, no modelo de concessão o operador é proprietário do petróleo que ele descobre em áreas de alto risco para atrair o investidor. Já no regime de partilha de produção, como foi no começo do pré-sal, a propriedade do petróleo passa a ser da União e você ressarce o operador dos custos que ele teve dentro de um procedimento negociado.

A Shell detinha um bloco de concessão, ou seja, o petróleo que ela descobrisse era dela. Aí vem a diferença entre a Petrobrás e as outras companhias estrangeiras e privadas. A Shell não quis correr o risco, são poços muito caros. Despendemos, somente em um poço, US$ 240 milhões e a Shell não quis correr o risco financeiro para enfrentar o risco geológico.  Então é uma grande diferença com uma empresa que tem compromisso com o desenvolvimento nacional.

Um ponto importante que é da competência geocientífica das empresas: a Shell não avaliou, com a devida competência, o prêmio que ela teria se ela investisse mais US$ 100 milhões naquele poço. Por que não avaliou? Porque não teve competência.

Quando tiramos a sonda para sair da Bacia de Campos para ir até a Bacia de Santos, nós sabíamos que a grande geração de petróleo estava muito abaixo do sal. O sal é uma camada impermeável, ou seja, o petróleo é gerado lá embaixo, migra por caminhos permeáveis e chega embaixo do sal e lá fica. É um conhecimento que parece trivial de explicar, mas que tem uma base científica muito pesada, mas muito pesada mesmo. Isto apenas reflete a competência do quadro técnico da companhia que permitiu a empresa a dizer “vamos apostar, nós vamos correr o risco consciente que podemos bater em grandes reservas petrolíferas embaixo do sal” e isso a Shell não tinha.

Após a descoberta do Pré-Sal e durante um período subsequente, a chamada grande imprensa desacreditou do seu potencial. Como o senhor encarou isso?

Excelente pergunta. É que nossa mídia ela tem um posicionamento ideológico, ela não é nacionalista. Tem um articulista de “O Globo”, o (Carlos Alberto) Sardenberg, que escreveu um artigo dizendo o seguinte: “o pré-sal é uma grande mentira”, enganando o povo brasileiro. É uma posição ideológica e sem base científica nenhuma. Eles tinham consciência que tínhamos batido em uma baita de uma riqueza brasileira. Isso para eles, sendo feito por uma empresa estatal, era uma ameaça. Não casava com a concepção de sociedade, país e mundo que eles têm que é contra empresas estatais. As organizações Globo estão aí e todo mundo sabe a coloração ideológica da Globo. Essa foi a razão. Eles quiseram desacreditar junto à opinião pública de um fato que eles sabiam que se continuasse daquela forma, se não fosse “torpedeada” essa informação, ia dar no que deu. A descoberta da maior província petrolífera do planeta nos últimos 50 anos.

E como instrumento de Desenvolvimento para o Brasil? Como o Senhor vislumbrava o futuro do Pré-sal?

O Brasil nunca teve energia. Nós sempre fomos carentes neste setor. Nós tínhamos carvão mineral, o que temos não tem as qualidades energéticas que tem o carvão europeu e norte-americano, sem desmerecer o produto nacional. Mas, então, o Brasil sempre foi carente de energia. A grande matriz energética brasileira sempre foi a eletricidade, com a maior participação. Mas era insuficiente. Um país gigante e rico, mas sem energia.

Você não pode fazer um programa de desenvolvimento industrial sendo dependente de energia, pois com um apagão você para as fábricas. Então a Bacia de Campos nos proporcionou um instante de autossuficiência, em um país que estava iniciando seu processo de crescimento e logo essa autossuficiência foi perdida. Por isso eu digo que não a conquistamos, pelo nosso baixo desenvolvimento fomos atingidos por ela.

Para, efetivamente, o Brasil se apropriar e se desenvolver autonomamente, com soberania, a nossa grande potencialidade como país, era preciso uma reserva de Petróleo e Gás Natural de acordo com a nossa potencialidade e isso é muita energia.

Foi quando descobrimos o pré-sal que chegou com essa consciência da necessidade energética que nós já tínhamos. A consciência de que a Bacia de Campos não seria o suficiente para nos sustentar por um período longo de desenvolvimento. Então a expansão da atividade exploratória foi uma consequência imediata e apoiada por um governo que tinha essa postura nacionalista. Foi isso que aconteceu.

Nós ainda descobrimos o pré-sal em frente à região mais consumidora de energia no Brasil. Então chegou, naquele quebra-cabeça do desenvolvimento, uma peça importantíssima: a segurança energética para 50 anos e a possibilidade de fazer um projeto de nação desenvolvida e soberana. Esse sentimento nós já tínhamos.

Quando batemos no pré-sal, furamos o primeiro poço, o segundo e nossos mapeadores de ofício correlacionaram os resultados em uma grande área. Tudo levava a crer que há uma grande probabilidade de estarem em toda essa área, que é gigantesca. Ela vai de Cabo Frio até Laguna, abaixo de Florianópolis.

Qual seu sentimento com relação à venda de reservas do Pré-Sal?

Eu me sinto como um cidadão brasileiro, que tem uma riqueza gigantesca, indispensável para nossa soberania e nosso desenvolvimento econômico e social. Estamos entre os 10 países mais desiguais do mundo, temos uma dívida social enorme. Eu vejo dessa forma.

Outro dia eu estava em uma audiência pública na Câmara dos Deputados e uma das pessoas que estavam participando disse que a Petrobrás não podia ser operadora única do pré-sal “porque acreditamos que a competição é que produz o desenvolvimento tecnológico e da eficiência industrial”. Não houve o debate porque não tínhamos tempo, mas depois eu esclareci, porque primeiro, na parte do desenvolvimento tecnológico, a Petrobrás ganhou dois prêmios da OTC, que é considerado o Prêmio Nobel da indústria petrolífera internacional, como uma empresa monopolista. Então, a competição não é bem isso. A produção industrial de bens depende de conhecimento, empreendimento, investimento, essa coisa toda. Segundo, a área do Pré-Sal estava aberta, por que a Shell não descobriu? Por que não investiram?

Uma vez eu chamei essas empresas estrangeiras de petróleo no Brasil de corsários. São verdadeiros corsários. Os piratas eram livres atiradores, os corsários operavam com a produção de seus países. E essas empresas são representantes dos interesses dos países dos quais são originárias. Fazem parte de uma estratégia de seus países sedes, estratégias geopolíticas. Não estão aqui como uma simples empresa. São representantes da indústria, do conhecimento científico e da tecnologia das suas próprias sociedades. Então elas têm que obter lucro e remeter esse lucro para fora. O pré-sal veio dar isso.

A Petrobrás competiu e venceu a competição. Qual é a companhia no mundo que compete e vence a competição e você obriga essa companhia a se desfazer desse grande recurso que naturalmente, pela sua competência, encontrou e identificou, não é? Onde é que está a meritocracia?

A história dessas empresas no Brasil é serem corsários. Elas vêm na nossa esteira. A Petrobrás descobre, o sistema abre novos blocos, aí elas vêm para cima, mas não investem, não correm o risco. Quando se abre esses blocos, estão prejudicando e sepultando todo o esforço da Petrobrás para competir nesse mercado.

É muito parecido com o que querem fazer com o refino da Petrobrás. O país investiu, criou indústrias regionais de refino de petróleo e agora o governo quer se desfazer por um preço irrisório. É um processo semelhante?

Isso. Por que essas empresas estrangeiras não constroem uma refinaria? Venham construir uma refinaria e competir com a Petrobrás. Esse é o cerne do empreendedorismo, da competitividade. O mercado está aberto.

Na verdade este é um movimento que está dentro de um plano mais geral de esquartejamento da companhia e de privatização da Petrobrás. Estão entregando todo o esforço de construção de uma infraestrutura para servir um mercado que tem um potencial de crescimento gigantesco. Quem investiu na Petrobrás? Os proprietários da Petrobrás somos nós, o povo brasileiro. Quer dizer que o cidadão brasileiro está sendo roubado. Está sendo saqueado nos seus direitos de proprietário da Petrobrás por um governo que quer esquartejar o sistema e vender as refinarias. E estão vendendo a propriedade do povo brasileiro, que é o acionista majoritário da companhia, que investiu dinheiro nela e é produto do nosso trabalho.

E o povo vai pagar duas vezes. Primeiro pela construção das refinarias e depois para a empresa que porventura comprar, pois ela vai querer recuperar o investimento no preço dos derivados de petróleo.

Exatamente. São investimentos que nós já fizemos. Quem comprar vai querer recuperar, praticando preços internacionais no mercado interno brasileiro. Por exemplo, nós descobrimos o Pré-Sal, produzimos no Pré-Sal a menos de US$ 6 o barril e praticamos preços internacionais, porque se não fizer isso os estrangeiros não vão investir no Brasil.

Certa vez trabalhei no Iraque e fomos a uma feira, em Bagdá. Por lá tinham bananas e as compramos, porque por lá não víamos bananas. Pagamos US$ 10 por uma banana porque o Iraque não produz bananas. E nós aqui no Brasil vamos pagar para empresas estrangeiras pelo nosso petróleo US$ 60 o barril, que custa US$ 6 no Pré-Sal com a Petrobrás. Isso não tem cabimento, não é do interesse nacional.

O que a categoria petroleira pode fazer para evitar essa tragédia anunciada?

Estrella: Nós, petroleiros, sozinhos, dificilmente enfrentaremos essa parada com perspectiva de êxito. Nós temos que ter a sociedade ao nosso lado. Temos que convencer o cidadão brasileiro que ele é proprietário disso. Quando você entrega o pré-sal, quando você vende uma refinaria brasileira, nós estamos vendendo uma riqueza que pertence ao cidadão brasileiro.

Se esse patrimônio for vendido, o governo vai obrigar o cidadão a se adequar a condições internacionais sobre um bem que nós produzimos no Brasil. Temos que convencer também o empresário nacional, o capital brasileiro. O conteúdo nacional, que fazia parte do grande regime que regulava o Pré-Sal, contemplava o empresário brasileiro. A participação deles nesta luta é fundamental. Temos que unir a sociedade brasileira. Se nós, petroleiros, nos isolarmos, vai ser difícil convencermos a população que ela deve se mobilizar e lutar por isso.

O que o senhor acha desse acordo que foi feito nos EUA pela Lava Jato quando a Petrobrás foi transformada de vítima em vilã e com isso em vez de ser ressarcida foi obrigada a pagar os acionistas?

Está no mesmo contexto. Muita gente acha que isso é teoria da conspiração, que não tem nada a ver isso aí, mas tem sim. A destruição da Petrobrás faz parte de um plano do grande capital internacional, principalmente ocidental, de impedir o desenvolvimento autônomo brasileiro.

Isso que você perguntou é produto de uma decisão do governo Fernando Henrique Cardoso, que abriu as ações da Petrobrás na bolsa de Nova York e se submeteu às leis dos EUA. Uma companhia estatal brasileira que tem boa parte do seu capital regida por leis que não são brasileiras. Então, essa coisa contra a Petrobrás e de desnacionalização da economia brasileira vem de longe e está encaixado nesse acordo que você citou.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, disse em certo momento que uma de suas missões era acabar com a memória de Vargas no Brasil. Ele não conseguiu, mas parece que agora esse projeto está em andamento. Todo aquele projeto de desenvolvimento local e projeto de nação que começou com Vargas está morrendo. O que o senhor pensa sobre isso?

Já se falou que o Brasil é uma banca de experimentação do ultra-capitalismo. As medidas que estão tomando no Brasil são mais extremadas, sob o ponto de vista capitalista, do que o próprio ambiente americano. Nos EUA, por exemplo, a hidroeletricidade, senão toda, mas em boa parte é estatal.

O Brasil está sendo um tubo de ensaio. Será a primeira experiência em um grande país da aplicação do ultra-capitalismo. É uma coisa extremamente perigosa, porque atrás disso vem um poderio político e militar. Não estamos tratando com um adversário trivial, porque é um adversário que tem um poderio gigantesco.

 

Davi Macedo e Gibran Mendes

Edição: Pedro Carrano

Fonte: Brasil de Fato