O papel da Petrobras no desenvolvimento e na construção da identidade nacional

Por Davi Carvalho, Pedro Rossi e Ana Luíza Matos de Oliveira

‘Vivemos num mar revolto do neoliberalismo com guerra ao Estado nacional’

Do Brasil Debate

É possível imaginar que um país subdesenvolvido alcance o patamar de desenvolvimento sem um projeto nacional que considere as necessidades específicas do seu povo, território, economia e política? Ampliando essa discussão, qual seria o papel da Petrobras, do setor de petróleo e gás e energia nessa complexa construção em tempo de mercados desregulados, Estados nacionais enfraquecidos e mundialização financeira? Para discutir o tema, Diálogo Petroleiro ouviu o economista e professor do Instituto de Economia da Unicamp, Wilson Cano. 

Leia, a seguir, a entrevista:

Diálogo Petroleiro: Um projeto nacional de desenvolvimento seria o caminho para superar as condições do subdesenvolvimento?

Wilson Cano: Nós temos que fazer, necessariamente, um corte entre a segunda metade dos anos 1980, pra cá e pra lá. Até a primeira metade dos anos 80 as economias subdesenvolvidas, praticamente quase todas, ou pelo menos as que mais avançaram no processo de industrialização, guardavam um teor de soberania nacional bastante razoável. Quero dizer o seguinte: elas podiam controlar os principais instrumentos de política econômica, guardadas naturalmente as proporções, porque nós nunca vamos nos livrar por inteiro do liberalismo ou simplesmente de sermos uma área de influência dessa ou daquela potência.

Mas até a primeira metade dos anos 80, o país controlava a entrada e saída de capitais. A balança de pagamentos era uma relação controlada e controlava o câmbio, havia política de comércio exterior, usava tarifas protecionistas e é verdade algumas das quais eram excessivamente protecionistas, poderiam ter sido menores, o país tinha uma política monetária e zelava pela moeda nacional. A partir da segunda metade dos anos 80 e, principalmente, a partir dos anos 90, o país abdica dessas políticas quando entra na ordem neoliberal. É como se o piloto abrisse mão de controlar os instrumentos na decolagem e no pouso do avião e o copiloto ficasse com essa responsabilidade.

E quem é o copiloto?

O copiloto é a ordem internacional, que naturalmente é homogeneizada pelos Estados Unidos. Na medida em que se ingressou na ordem neoliberal, abriu a conta de capital da balança de pagamentos, ingressou na Organização Mundial de Comércio, rebaixou as tarifas, então, pra você mexer em tarifa – só pode mexer em certos episódios, em certas anomalias, em certas crises específicas, durante um curto tempo – fim do qual você tem que retomar as normas que passaram a ocorrer com sua entrada, com seu ingresso na OMC. Então, o projeto nacional, hoje em dia, pra você funcionar dentro dos marcos da ordem liberal não pode ser um projeto nacional autêntico, mais amplo, necessariamente vai ser um projeto restringido porque ele só vai poder operar nas brechas.

Qual foi o papel histórico da Petrobras na construção desse projeto nacional que você está descrevendo, que durou até meados dos anos 80?

Essas grandes estatais, como a Petrobras e a Eletrobras, foram peças fundamentais – mesmo no sentido político-econômico. A Petrobras, além de resolver nosso problema de petróleo, foi responsável pela implantação da indústria nacional de máquinas e equipamentos. Porque, a partir do momento em que se tomou a decisão de internalizar a produção petrolífera e as refinarias, principalmente as refinarias de petróleo, essas refinarias foram montadas. Como? A Petrobras chamou aquelas indústrias – e muitas delas eram indústrias de fundo de quintal, eram empresas pequenas, empresas médias, que haviam sido geradas principalmente durante a Segunda Guerra Mundial – ela convocava esses empresários e passava todos os desenhos técnicos, plantas, condições, enfim, ela ensinou essa gente a produzir uma refinaria de petróleo.

E como as encomendas da Petrobras eram descomunais, muito grandes para a dimensão do nosso parque nacional de fabricação de máquinas e equipamentos, o peso dela na demanda nessas coisas era um peso extremamente importante. Como também a Eletrobras tem um peso no que tange a questão de material hidráulico e elétrico. A Petrobras teve isso, ela foi praticamente a geratriz dessa indústria nacional de máquinas e equipamentos.

A Petrobras também sempre teve uma importância simbólica, na construção de uma identidade nacional e na ideia de que o Brasil poderia ser um país moderno, um país avançado, mas hoje parece que a gente assiste a desconstrução desse imaginário.

Como o senhor vê essa tentativa de desconstrução da imagem da Petrobras?

Sempre se tentou fazer uma desconstrução da Petrobras, desde antes dela nascer. A luta que a direita desencadeou contra a tentativa de se implantar uma empresa estatal do petróleo foi muito grande e custou a vida de (Getúlio) Vargas. Essa que é a verdade. E se venceu aquilo graças a uma série de condições. Ou seja, entendo que o suicídio de Vargas em agosto de 1964 representou, na verdade, uma postergação. O ano de 54 poderia ter sido 64 com a implantação do golpe militar.

O suicídio do Vargas, como ele tinha um amplo apoio popular, o gesto dele, eu entendo, foi um gesto político que teve como consequência imediata empurrar a tentativa de um golpista mais à frente, que ocorreria então em 64. Esta luta do petróleo foi uma luta nacional e aqui nós tivemos não só os trabalhadores, estudantes, e um importante movimento militar nacionalista que defendeu intransigentemente a construção da Petrobras. Foi uma luta muito importante. A Petrobras não só é importante por esse lado político da economia, como também pelo lado material no sentido de estimular, induzir o desenvolvimento de produção de setores complexos de máquinas e equipamentos.

A Petrobras pode liderar uma estratégia de política industrial?

Sem dúvida. Tem uma química fina, química básica que você tem que desenvolver, que você não desenvolveu ainda. Nós estamos engatinhando em fármacos; nós somos grandes importadores de fármacos, por exemplo. Então, todo esse setor da química fina é um setor que ainda não está ocupado, mas ocupado por importações, basicamente. Hoje, nós somos grandes importadores de produtos químicos; perdemos, inclusive, a concorrência em vários segmentos da indústria química.

Então, esse lado da química é um lado estratégico fundamental, que está sendo paralisado. Houve um grande avanço nos anos 70, começo de 80, depois ficou congelado; ficou mais no caso na extração do petróleo do que refino, mas o desenvolvimento subsequente que se daria, que estava pensado no Proálcool, se tinha projeto de desenvolver um alcoolquímica, era um projeto menor que na verdade naufragou, mas você tem esses flancos importantíssimos do setor industrial que não estão completos ainda.

A Petrobras passou a viver uma nova fase na história com a descoberta do Pré-sal. Tem toda uma discussão em torno de como explorar o Pré-sal. O governo optou por um regime de partilha em detrimento, de um lado, da concessão, e de outro lado da operação 100% Petrobras.  Como o senhor vê tudo isso e a tentativa, hoje, de mudança do regime de partilha para um regime de concessão?

A tentativa de mudança é uma tentativa de mudança entreguista, claramente entreguista. Há diversos projetos, mas o que mais transpareceu foi o projeto Serra. É um projeto entreguista, porque evidentemente você tem a Petrobras além da questão fiscal e financeira. Petrobras é capaz em regime de preços normais – não agora com barril de petróleo a 40 dólares – de gerar um excedente financeiro e fiscal enormes. E o Brasil tem a vantagem de que ele teria esse petróleo, ter todas essas condições de ser um grande produtor de petróleo, mas não a de ser um país petroleiro. E o que é um país petroleiro? Um país petroleiro é um país que tem o petróleo, uma riqueza monumental, mas que essa é a sua riqueza.

Veja a desgraça da Venezuela. A Venezuela é um país petroleiro; 75% das exportações: petróleo. 75% da receita fiscal do Estado: petróleo. 25% do PIB: petróleo, 2% do emprego: petróleo. Veja o abismo que tem, e não é só isso, porque essa dimensão fiscal do petróleo nesses países é extremamente complicada ao se fazer a gestão da política econômica. Enquanto você tem um barril a 100 dólares você tem uma receita fiscal compatível com 100 dólares, mas na hora que esse barril para 50, a receita fiscal também cai pela metade. E aí o que você faz? Fecha escola, fecha hospital, o que é que você faz para continuar administrando o país?

Então, é um pandemônio, é um negócio complicadíssimo. Nós não teríamos esse problema, inclusive, caso o excedente financeiro gerado pela Petrobras fosse muito grande com o Pré-sal, já, inclusive, se dispunham de formas e criações de instituições de fundo soberano que permitiriam contornar essa questão das oscilações do preço internacional do petróleo. Teríamos, então, uma fonte geradora de importantíssimo excedente, que poderia restaurar a parte da capacidade de geração de investimentos.

A Petrobras, hoje, vive um momento muito crítico e a reação da presidência da Petrobras é de uma venda enorme de ativos e de uma reestruturação da empresa; de mandar embora terceirizados e, diante disso, o Sindipetro e os petroleiros, de uma forma em geral, se posicionaram com uma greve, cuja pauta não é a pauta de sempre, que costuma ser a pauta salarial, mas uma pauta em defesa da Petrobras. Tem a frase “Defender a Petrobras é defender o Brasil”. Como o senhor vê esse movimento?

Acho muito saudável porque estamos vivendo um mar revolto do neoliberalismo terrível. O neoliberalismo é uma coisa extremamente contagiante e contaminou a sociedade, a mídia, a opinião pública e você tem hoje uma sala de aula de jovens de 20 anos que são conservadores. Se você tivesse numa sala com alunos de 40 anos e a maioria fosse conservador é uma coisa, tem uma certa plausibilidade, agora você encontrar uma turma com jovens de 20 anos de idade conservadores, isso é terrível porque você não vê futuro neles.

E a condução política, o pensamento político desses jovens mais tarde vai ser o pior possível. Ou seja, vai ser uma máquina decididamente conservadora e nada de nacional, porque o neoliberalismo desnacionaliza. Ou seja, todo conjunto de política, privatizações, abertura comercial e financeira etc. é uma guerra declarada ao Estado nacional. Não porque os americanos gostem de lidar com o Estado nacional dos outros, mas é que o capitalismo na forma como ele chegou nos anos 80 e 90 exige a abertura de toda e qualquer fronteira para ele poder realmente realizar a sua valorização internacional. Se você não tivesse cometido essas aberturas decorrentes do Consenso de Washington, a crise de 2007, 2008 não teria sido uma crise estupenda, uma catástrofe; teria sido muito menor.

E como o senhor avalia o projeto de desenvolvimento recente? Quais foram seus êxitos e limitações?

Então, falar de um projeto nacional agora é projeto Lula. O que foi o projeto Lula? Ele manteve as linhas gerais da política macroeconômica neoliberal, ele fez o Bolsa Família, ou seja, ele aumentou as transferências de caráter social para os pobres e o Bolsa Família é tão pequeno, não é nem 1% do PIB, e matou a fome de 45 milhões de pessoas. Isso é ótimo para a direita; não para a direita burra. A direita burra vai dizer que essa é a maior fábrica de vagabundos. A direita inteligente aplaude. Tem que aplaudir porque, evidentemente, você deu comida para 45 milhões de pessoas. Esses 45 milhões não vão ser comunistas, não vão fazer greve, não vão encher o saco do capitalismo quando você dá comida para eles.

Ele aumentou o salário mínimo; mas os caras não gostam, evidentemente. O capital não gosta disso, mas ele teve coragem de fazer uma restauração ideal, bastante relevante. Pelo menos até o início de 2011 os reajustes do salário mínimo foram altamente significativos, foram altos. Muito menores naturalmente do que a taxa de juros colocada em termos compostos, menos da metade daquilo lá, naturalmente. Mas foi muito importante aquilo.

As liberações que ele promoveu no sistema de crédito ao consumidor e em especial ao trabalhador, que não tinha essa linha de crédito, foram coisas extremamente relevantes que foram responsáveis diretos pelo aumento, muito expressivo, do consumo das famílias. E o consumo das famílias responde por 70%, 80% da demanda efetiva, isso é muito significativo desde que se tenha uma taxa de inversão naturalmente funcionando. Claro, não se pode funcionar só com consumo. E a política externa. A política externa brasileira foi progressista; nós conseguimos não entrar na ALCA e fizemos todo um avanço de relacionamento novo com a América Latina, África, com América Central em decorrência dessas políticas. Agora, ele não mexeu nas questões cruciais.

Como as políticas neoliberais estão atreladas necessariamente ao problema de apreciação cambial, então resulta que ele arrebentou todos os muros do protecionismo que já estavam liquidados. E aqui você teve o problema da desindustrialização, gravíssimo, que este ano, inclusive, a coisa está se tornando ainda mais grave do que já era. Em 2015, particularmente as taxas de depreciação da indústria são impressionantes, já estão em 7%, média anual. Então, ele fez isso, e como parte disso gerou bons negócios, a política externa gerou excelentes negócios para as empreiteiras e mesmo para algumas empresas produtoras de bens e serviços, então os apoios políticos aqui foram misturados: povão, classe trabalhadora por causa do salário mínimo, e como a economia dele, ele pegou o vento pela popa e pode crescer; com o crescimento disso cresce a receita fiscal, cresce a economia, cresce o investimento e cresce o emprego. Então, tá todo mundo feliz. Mas em economia nada é contínuo nem eterno, você tem evidentemente a exaustão desse ciclo que se dá em 2010, 2011. Esse céu de brigadeiro já era.

Pegando o gancho das empreiteiras, vamos falar um pouco sobre a questão da corrupção. As investigações dão conta dos desvios enormes de recursos na Petrobras e seus efeitos sobre os investimentos da empresa. Como separar o joio do trigo, manter os investimentos da empresa e ao mesmo tempo sanar a questão da corrupção?

Estamos vivendo um momento trágico, um momento dos grandes azares no manejo da política econômica, porque não é só o problema do escândalo da corrupção. O escândalo da corrupção é uma coisa significativa, pega a opinião pública etc. e tal, mas nós pegamos a queda do barril de petróleo de 100 para 40 dólares, então a receita da Petrobras reduziu em 60%. O que fazer? Você tem que engolir a taxa de inversão, não tem jeito. O programa de investimentos da Petrobras era fenomenal, gigantesco e extremamente diversificado, que pega justamente a indústria química. Mas como nada na economia é eterno, é constante, evidentemente que essas coisas terão que mudar, de alguma maneira. Então, se junta crise política e a exaustão dos poucos anos de ouro da exportação de commodities; é o pior dos mundos. Ou seja: quem reina nesse momento é a pobre da Geni, que hoje se chama Dilma. Não tem jeito! É uma crise complexa, a política engalfinhada com a economia e muita gente botando lenha nessa fogueira.

Um dos pontos importantes dessa greve do sindicalismo em torno da Petrobras e da indústria naval é a questão da terceirização. Os petroleiros argumentam que as condições de trabalho dos terceirizados é muito pior e agora eles estão vivendo uma situação de que os terceirizados estão sendo demitidos. Como o senhor vê essa questão da terceirização numa empresa como a Petrobras?

A terceirização em si é um dos males do neoliberalismo porque ela vem dentro do pacote do Consenso de Washington, faz parte das reformas das relações capital trabalho. Por que o capitalismo se move tentando fazer alguma mudança nas normas trabalhistas em questão? Para abaixar o custo efetivo de trabalho. Se falar isso na Europa, Estados Unidos, Japão, que são sociedades gordas, com renda per capita de 40, 50, 60 mil dólares, ninguém passa fome; mas se você falar num país subdesenvolvido em abaixar o custo de trabalho é um crime hediondo. É uma coisa terrível, porque se está destruindo uma coisa que se construiu aos poucos. Levou algumas décadas para constituir efetivamente um certo mercado de trabalho – imperfeito, complicado, subdesenvolvido, com um desemprego disfarçado enorme no setor terciário, enorme – mas se destruiria o pouco que se tem de bom.

No caso dos petroleiros é mais complicado ainda porque tem a questão de segurança. É um setor de altíssimo risco, onde os acidentes são fatais e muitas vezes são acidentes de amplitude complicada. E esse pessoal terceirizado evidentemente não tem uma consistência técnica de aptidão, treinamento, de conhecimento que teriam se fossem empregados da própria companhia, treinados e concursados.

A Petrobras é uma escola, uma enorme escola, uma verdadeira universidade. Aquela empresa é um mundo, uma coisa gigantesca. E você fazendo isso, evidentemente, você está enfraquecendo as bases de formação de quadros que essa empresa tinha. E formação de quadros é uma coisa seriíssima. Se você comparar o estado brasileiro hoje e o estado brasileiro de 30 anos atrás são duas coisas diferentes. Estado brasileiro hoje não sabe fazer projetos de investimentos. Porque o governo brasileiro não tem mais economistas capazes de fazer projetos. Não têm ideia do que é o setor público. Não têm ideia do local onde eles trabalham. Não têm formação alguma na cabeça.

Inclusive, eles admitem por concurso centenas ou milhares de gestores e depois é que eles vão distribuir. O cara que entrou ali de repente vai para o Ministério da Fazenda, o outro vai para o Ministério da Reforma Agrária, o outro vai para a Saúde, é uma coisa completamente desorganizada. Quando que você teve historicamente, você formou quadros na economia brasileira. O Vargas formou um Estado. Antes era um Estado liberal, era um estado livre-cambista, um Estado até 1929 que depois de 1930 se transforma e vira um Estado interventor, um Estado desenvolvimentista, um Estado industrializador, só que você não tinha essa gente. Então você teve que pegar gatos pingados daqui e acolá, treinar, parte de militares, para botar pra produzir quadros técnicos de excepcional conhecimento, nos anos 50, 60.

Disponível em http://jornalggn.com.br/noticia/o-papel-da-petrobras-no-desenvolvimento-e-na-construcao-da-identidade-nacional