As eleições se aproximam e a Petrobras está no centro do debate, seja pela inflação dos combustíveis e seus efeitos corrosivos sobre o poder de compra do povo, seja pelo debate oportunista em torno da corrupção, que tem na estatal brasileira o seu cavalo de batalha contra Lula, favorito nas eleições.

Quanto ao último caso, o debate entre os presidenciáveis realizado no fim de agosto nos deu um exemplo.

Na ocasião Bolsonaro chamou atenção por uma mentira grotescamente exagerada. Segundo o atual presidente, a “roubalheira” dos governos do PT teria dado à Petrobras um endividamento em torno de 900 bilhões de reais, cifra impressionante para uma empresa com valor de mercado de menos de R$ 500 bi.

É claro que o valor citado é falso e por maior que fosse, o endividamento por si só não é atestado de ilicitude, como sabe qualquer executivo à frente de uma empresa em expansão que demanda capital para investimento. Mas apesar disso, a falácia de Bolsonaro nos abre espaço para discutir a questão: quem de fato assalta a Petrobras?

História de Luta

A Petrobras foi criada em 1953 no governo de Getúlio Vargas, fruto de uma intensa luta do povo brasileiro pelo monopólio estatal, na campanha que ficou conhecida como “o petróleo é nosso”.

Tal campanha surgiu em resposta às tentativas do governo Dutra de permitir a exploração do petróleo por estrangeiros, sob a alegação de incapacidade técnica do Brasil para tanto. Pela sua força, a campanha “O petróleo é nosso” arrastou até mesmo Vargas, cujo projeto original de criação da Petrobras não previa o monopólio estatal, mas que viria a ser estabelecido pela lei nº 2.004/1953, que garantiu ao Estado a exploração, extração, refino e transporte de óleo bruto. Mais recentemente, sob os governos petistas, a Petrobras pôde demonstrar novamente a desonestidade e o entreguismo daqueles que afirmavam a incapacidade do nosso país para a exploração do petróleo. Com a descoberta do pré-sal e o desenvolvimento da tecnologia necessária para a sua exploração, o Brasil atingiu a autossuficiência nominal, permitindo a produção de petróleo em quantidade superior à utilizada no país.

Entretanto, a despeito de nossa capacidade, não faltaram ofensivas contra a nossa principal empresa estatal e contra nossa soberania energética. O golpe inaugural foi desferido pelo governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (FHC), em meio à onda de privatizações.

Após reprimir duramente a greve dos petroleiros de 1995, inclusive fazendo uso do exército, FHC emendou a constituição para quebrar o monopólio estatal e promulgou a lei 9.478/97, abrindo o setor para as empresas privadas. Não conseguiu privatizar totalmente a Petrobras, mas às custas do povo brasileiro disponibilizou fatias cada vez maiores da empresa para o mercado, inclusive estrangeiro.

Já em 1997, foram 180 milhões de ações vendidas na Bolsa de São Paulo ([1]). E em 2000, quando a empresa passou a negociar papéis na Bolsa de Nova York, 28,5% das ações ordinárias foram vendidas a preços artificialmente deprimidos pelo mercado ([2]). Como resultado, se até 1997 a União mantinha mais de 80% do controle acionário da empresa, no início dos anos 2000 a cifra havia caído para 57%.

Em meio ao contexto de descoberta e exploração do pré-sal, os governos petistas foram marcados por enormes investimentos da Petrobras, gerando empregos e fortalecendo toda a cadeia produtiva do setor. Visando captar recursos para tanto, a Petrobras realizou em 2010 a maior capitalização do mundo, emitindo mais de 4 bilhões de ações.

Tal operação, contudo, não diminuiu a participação da União na empresa. Pelo contrário, a aumentou. Mas desde o golpe institucional de 2016, a tendência entreguista voltou a se fortalecer com os governos Temer e Bolsonaro. Hoje a União mantém apenas 50,3% do controle acionário e só 36,6% do capital social da maior empresa brasileira. Em contraposição, os investidores estrangeiros detêm hoje 41,5% do controle acionário e 49,6% do capital total ([3]).

Esse processo demonstra a dilapidação do patrimônio nacional construído pela luta popular em defesa do nosso país. Em primeiro lugar o saque sobre o povo brasileiro se apresenta no repasse para os investidores estrangeiros dos dividendos que seriam destinados ao governo federal e poderiam financiar programas sociais e investimentos nas diversas áreas (saúde, educação, infraestrutura etc).

Esse aspecto se torna mais dramático se considerarmos a atual conjuntura. Com a retomada econômica após a pandemia e a guerra na Ucrânia os preços do petróleo dispararam, aumentando os lucros do setor. Para se ter ideia, somente no segundo trimestre de 2022 a Petrobras teve lucro de mais de 54 bilhões de reais, cifra 26% maior que a do mesmo período de 2021. Os lucros enormes observados neste período foram revertidos em uma distribuição obscena de dividendos, fazendo da Petrobras simplesmente a maior pagadora de dividendos do mundo no segundo trimestre de 2022[4], muito acima de suas concorrentes do setor do petróleo ([5]). Para se ter noção do salto, veja a figura abaixo[6]:


O abandono dos investimentos e as privatizações completam o quadro que viabiliza o repasse recorde de dividendos / Fonte: Inter

Mas além da elevação do preço do petróleo, o que permite tamanha generosidade com os acionistas? Há dois aspectos importantes, ambos com origem no golpe de 2016 e relacionados à dilapidação de nossa soberania nacional. O primeiro é a política de paridade de preços internacionais e o segundo é o abandono dos investimentos.

Política de paridade internacional dos preços e desinvestimentos

A política de paridade internacional favorece duplamente o mercado estrangeiro. Por um lado, aumenta os preços praticados no mercado doméstico tornando competitivas as empresas estrangeiras que antes não podiam competir com a empresa brasileira, que tem seus custos determinados em reais. Por outro, ao praticar preços internacionais, mais altos, aumentam os lucros e os dividendos, sendo que os investidores estrangeiros, como vimos, acabam sendo os maiores beneficiados por ser o grupo detentor da maior fatia do capital social da empresa.

Em contrapartida, o povo é quem paga a conta, com o aumento do preço dos combustíveis que acaba contaminando todos os preços em função dos custos com transporte. Ao optar por se orientar pelos preços internacionais e não pelos seus custos, a Petrobras remunera os acionistas às custas do povo brasileiro que cada vez mais se vê acossado pela fome e pela miséria. E Bolsonaro, por mais que lance bravatas eventuais contra a política de preços da Petrobras, não dá sinais de querer efetivamente revertê-la. Fosse o caso, ao menos um entre os cinco presidentes indicados por Bolsonaro para a empresa teria tentado rever a medida que penaliza o povo e a economia do Brasil.


Desde 2015 há uma progressiva diminuição dos investimentos da empresa em valor nominal / Gráfico elaborado pelo autor

O abandono dos investimentos e as privatizações completam o quadro que viabiliza o repasse recorde de dividendos. Como se nota na figura acima ([7]), desde 2015 há uma progressiva diminuição dos investimentos da empresa em valor nominal, o que significa que em termos reais a diminuição é ainda maior. Além disso, há desinvestimentos em diversas áreas, como a distribuição e o refino, concentrando as atividades na produção do petróleo bruto.

Essa estratégia, que teve como marcas a privatização de refinarias ([8]) e da BR distribuidora[9], nos relega um papel subordinado no mercado internacional de petróleo, reverberando os argumentos dos primeiros entreguistas que não acreditavam na capacidade nacional de exploração do petróleo e defendiam a entrada de empresas estrangeiras para tanto.

A consequência dessa falta de investimentos é que, ainda que o petróleo bruto seja o segundo produto mais relevante de nossa pauta de exportação em 2022, os combustíveis de petróleo refinado são o segundo produto mais importado ([10]).

A Petrobras foi construída como patrimônio do povo brasileiro. É um instrumento fundamental na manutenção de nossa soberania, considerando o papel estratégico do setor energético. Ela representa a capacidade técnica e política de nosso povo de definir seu próprio rumo. As políticas neoliberais, que mais recentemente se apoiam no movimento neofascista de Bolsonaro, buscam a todo custo destruir esse patrimônio. A Petrobras, sob Temer e Bolsonaro, tem tido suas estruturas de refino e distribuição desmontadas. O resultado é a destruição de empregos, a consolidação do Brasil como mero exportador de bens primários e o aprofundamento da nossa dependência energética. Ao mesmo tempo, a crescente desnacionalização do capital da empresa combinada com a perversa política de paridade internacional aumenta os dividendos repassados aos investidores estrangeiros às custas do povo, que amarga o aumento dos preços. Não é difícil perceber quem realmente assalta a Petrobras e o povo brasileiro.


[1] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/8/15/brasil/13.html

[2] https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1052:venda-de-acoes-da-petrobras-foi-mau-negocio&catid=29:artigos-materias&Itemid=34

[3] https://www.investidorpetrobras.com.br/visao-geral/composicao-acionaria/

[4] https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/noticia/2022/08/24/petrobras-foi-a-maior-pagadora-de-dividendos-no-mundo-durante-2o-tri-diz-gestora.ghtml

[5] https://www.brasil247.com/blog/a-farra-dos-dividendos-na-petrobras-rentabilidade-obscena-para-os-acionistas

[6] https://www.cnnbrasil.com.br/business/com-lucro-maior-petrobras-aumenta-pagamento-de-dividendos-veja-o-historico/

[7] https://www.investidorpetrobras.com.br/visao-geral/indicadores/investimentos/

[8] https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2022/05/5007685-com-refinarias-privatizadas-gasolina-custaria-19-a-mais-e-diesel-12.html

[9] https://noticias.r7.com/economia/distribuidora-privatizada-pela-petrobras-vende-a-gasolina-mais-cara-do-brasil-29042022

[10] http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home

Brasil de Fato (https://www.brasildefatopr.com.br/2022/09/12/opiniao-o-grande-assalto-a-petrobras)